Maria, única fotografia.

 

 

MARIA MESTIÇA


 


 

Esta é a minha bisavó, Maria Pimenta, sobrenome dos senhores da fazenda.

Assim que casou, passou a usar o sobrenome Hipólito Guimarães.

Maria foi mãe de vários filhos, entre eles, outra Maria, mãe de meu pai.

Maria Mestiça é um monólogo poético-dramático baseado na história real da bisavó da autora, Nicole Puzzi.

Maria, uma mulher afrodescendente nascida em cativeiro na Fazenda da família Pimenta, em Minas Gerais. Filha e neta de um senhor branco, Maria cresceu marcada pelas violências do sistema escravocrata, até o momento em que, já adolescente, encontra coragem para fugir da fazenda ao lado de um jovem capataz mestiço, futuro marido e companheiro de vida.

A autora, mulher branca e bisneta de Maria, utiliza o teatro como espaço de memória, escuta e reparação simbólica. Ao revisitar essa história familiar, revela uma verdade comum a milhões de brasileiros: a formação identitária marcada por uma miscigenação forçada, muitas vezes ocultada ou negada. O espetáculo convida o público, especialmente o branco, a reconhecer sua ancestralidade afrodescendente, a respeitar a memória dos escravizados e a romper com os silenciamentos históricos.

Encenada por uma atriz em solo, com ambientação minimalista e recursos visuais e sonoros, a peça conecta o passado ao presente com sensibilidade, beleza e profundidade emocional. A linguagem acessível favorece o diálogo com públicos diversos, promovendo empatia e pertencimento.

 

Este é o neto de Maria, quando menino



 e, já adulto, no dia do casamento com minha mãe, mulher branca descendente de italianos.

 



Esta sou eu. Uma mulher idosa de 67 anos, que tem orgulho de ter uma bisavó tão especial.

 

Maria Mestiça, a peça.

 

MARIA MESTIÇA

A peça

Abertura da encenação

 

(LUZ BAIXA. A ATRIZ JÁ ESTÁ EM CENA QUANDO O PÚBLICO ENTRA. SENTADA EM UM BANCO SIMPLES, FOLHEIA COM ATENÇÃO UM LIVRO ANTIGO E OUTROS VOLUMES EMPILHADOS AO SEU REDOR. UM AMBIENTE DE ESPERA SUAVE, ÍNTIMO. SONS DISCRETOS, TALVEZ O RANGER DE PÁGINAS, VENTO, PASSARINHOS DISTANTES. AO TERCEIRO SINAL, ELA FECHA LENTAMENTE O LIVRO PRINCIPAL, RESPIRA E SE LEVANTA COM CALMA. CAMINHA EM DIREÇÃO AO PÚBLICO, COM DOIS LIVROS NAS MÃOS. O SEU PERMANECE SOBRE O BANCO.)

 

ATRIZ — Boa noite. Sejam muito bem-vindos.

(ABRE O LIVRO DE GONÇALVES DIAS E LÊ COM SERENIDADE SOLENE.)

Do ríspido Senhor a voz irada

rábida soa,

Sem o pranto enxugar a triste escrava

Pávida voa.

Mas era em mora por cismar na terra,

Onde nascera,

Onde vivera tão ditosa, e onde

Morrer devera!

Sofreu tormentos, porque tinha um peito,

Qu’inda sentia;

Mísera escrava! no sofrer cruento,

"Congo!" dizia.

A Escrava - Gonçalves Dias, 1850.

 (PAUSA. FECHA O LIVRO. OLHA DIRETAMENTE PARA O PÚBLICO. ABRE O SEGUNDO VOLUME.)

ATRIZ — “São mulheres desgraçadas, como Agar o foi também,
Que sedentas e alquebradas, de longe… bem longe veem,
Trazendo com tíbios passos, filhos e algemas nos braços.
Na alma — lágrimas e fel. Como Agar, sofrendo tanto que nem o leito do pranto tem
que dar para Ismael…”
— Navio Negreiro, Castro Alves, 1868.

(FECHA O LIVRO COM REVERÊNCIA. SILÊNCIO. RESPIRA.)

ATRIZ — A arte viu. Sentiu. E gritou. Poetas deram nome à dor, em verso, em lágrima, em denúncia.

Mas a história... A história ignorou.
Seguiu,

como se esses corpos e vozes jamais tivessem existido.

Como se nem humanos fossem.

Hoje, século XXI, ainda é preciso contar. Ainda é necessário falar.
Porque há brancos, muitos, que ainda agem como os senhores de outrora.
Vivemos numa terra de liberdade aparente, nublada pela arrogância, onde o racismo se disfarça, mas nunca some. Basta olhar os presídios. As comunidades esquecidas. As diretorias das empresas.
A cor ainda separa.
E o silêncio ainda dói.

Alguns podem dizer que esses poemas pertencem à fala negra.
E sim, pertencem.
Mas não só.
Esses poemas também nos atravessam.
A nós, brancos.
E deveriam nos constranger.
Nos despertar.
Nos responsabilizar.

Somos todos seres humanos.
Mas a cor da pele, por séculos, tem privilegiado os brancos e violentado os demais.

É hora de olharmos para a verdade que mora no sangue, até no nosso.

Você sabia?
O DNA mitocondrial, herdado exclusivamente das mães, revela que 36% dos brasileiros têm origem em mulheres africanas escravizadas.
Enquanto mais de 90% da contribuição genética masculina vem de homens europeus.

Ou seja...
A miscigenação brasileira foi, sim, marcada pela violência, crueldade, brutalidade.
Mas também pela resistência.
Pela sobrevivência.
E pela força de mulheres que nunca deixaram de existir, mesmo apagadas nos registros, nos sobrenomes, nos retratos.

É por elas que estamos aqui.
Por Maria.
Por todas as Marias.

Por minha bisavó. Maria, a mestiça.

 

 ABRE O SEU LIVRO ANTIGO.

Atriz — (COM TERNURA E REVERÊNCIA) O nome dela era Maria. Só Maria.

Podia ter sido Maria de Lourdes, Maria da Esperança... Mas era só Maria.

Sem sobrenome, sem registro, apenas um rabisco no caderno da fazenda onde nasceu: (LÊ DO LIVRO, COMO QUEM REVIVE UMA MEMÓRIA ANCESTRAL) "Nasceu mais uma pretinha. Magrinha, mirrada, cor clara. Olhos verdes. Se vingar, não será de grande valia. (ANDA LENTAMENTE, OLHANDO O CHÃO) Chamaram-na de Maria, mas podia muito bem ter sido Maria das Dores, como tantas outras Marias... Nem sabia ao certo a cor da sua pele. Sabia apenas que nascera em cativeiro, Filha e neta de seu próprio senhor. (REFLETINDO) Filha e neta do senhor? É isso? É, como tantas outras crianças mestiças.

Sabia que tinha irmãos e irmãs, mas não sabia quem eram, nem onde estavam. Rezava por eles, mesmo sem os ter visto nunca.

Era sua forma de se manter em paz com Deus... e com a ausência de sua mãe, que se morreu ou foi vendida, ela não sabia. (CURVA-SE, COMO UMA CRIANÇA EXAUSTA) Trabalhava desde os cinco anos. Diziam que era forra, livre, "ventre livre"...

Mas liberdade era palavra distante.

As três velhas da senzala falavam disso:

— Dizem que tem poeta que luta por nós... gente graúda lutando pela libertação de nosso povo.

Mas aqui a dor é velha demais pra sonhar com liberdade.

Aqui a gente nem sabe o que acontece nesse mundão de meu Deus.

 

Só diziam por dizer, com a mente nublada de tanto sofrimento e cicatrizes do corpo e da alma, mas os donos da Fazenda e de seus destinos diziam que:

- Maria era impossível, que devia ser mais atenta, menos infantil.

- Tava ali pra trabalhar, negrinha!

Então, ela trabalhava.

 

O cabelo comprido encaracolado, a pele clareada e o olho mais verde que a grama dos pastos,

era igualzinho o de seu dono, pai e avô. (REPETE ESTRANHANDO. CONTA NOS DEDOS OU RELÊ NO SEU LIVRO) Dono, pai e avô. As velhas diziam:

— A pele branqueada não é motivo de não ser chamada de negrinha. Seja negra como sua mãe, Maria. Mais negra na alma que branca na pele. Essa cor que herdou foi dor, não privilégio.  Seja mais negra como a sua mãe do que branca como esse sinhô que prenhou ela pra você nascer nas dores. Esse sinhozinho sem coração, desde menino, quando atacou sua avó e a fez morrer no parto...  ...Mas, a sua mãe sobreviveu pra você nascer e ter a chance de lutar por uma vida livre.

E, com um resto de orgulho, o Pai Nonô, que era tão preto que nem se via suas feições e ainda tinha belas marcas no rosto de quando era das selvas, dizia:

 - A pele não muda a raiz. Sua raiz foi plantada na terra de nossos antepassados.

Pai Nonô era velho como o tempo. Sua voz era aveludada, morna, boa de seu ouvir.

 

Mas, ás vezes, suas histórias eram tristes de fazer doer o coração:

— Nos tempos antigos existia uma terra negra, retinta.

Ele contava das matas, dos bichos gigantes, de quando corria com seus irmãos livres e donos de seus corpos e almas.

Então, o rosto de pai Nonô ficava cheio de banzo e lembrava-se de quando chegaram uns homens brancos usando um monte de pano com fala estranha, do mesmo jeito que todo mundo fala nessa terra brasileira, linda de se ver, mas medonha de se viver.

  Só que a tribo de Pai Nonô não sabia o futuro desesperador que os aguardava.

— Trouxeram presentes e levaram almas. Fingiram festa, espalharam dor. Não houve guerra, não houve honra de luta, houve traição, falsidade, malícia. Eles arrancaram a mim e meu povo nos grilhões. Muitos da tribo morreram na tentativa de escapar, de salvar suas famílias, de lutar. Mas, eles atiravam nos anciãos a cada tentativa nossa de defesa. Perdemos os guardiões de nossa história...  Aconteceu mais mortes na longa caminhada até o mar. Outros morreram nos porões dos navios apavorantes e foram jogados no mar. As mulheres...

E o preto fazia sinal da cruz e rezava profundamente, por menos de dois segundos e, olhava assustado pros lados, por causa do hábito de apanhar na roça quando paravam um segundinho pra recuperar o fôlego.

- Não houve guerra pra dominar o meu povo – prosseguia, cortando o fumo de corda e enrolando o cigarro na palha.  Houve engano, malícia e covardia.

 Essa era a parte que Pai Nonô limpava uma lágrima. (A ATRIZ BAIXA A CABEÇA EM SILÊNCIO, RESPEITOSO)

A menina magrinha ouvia o preto velho. E, ele falava de liberdade, de uma terra só de preto. Parecia tão impossível pra mocinha que existisse um lugar onde os brancos não mandavam que ela imaginava que o Pai Nonô inventava a liberdade dos pretos numa terra de pretos, só pra ficar feliz e esquecer as cicatrizes de seu lombo.

E, ela crescia e trabalhava e trabalhava e crescia, crescia no tamanho, cresciam - lhe os peitos, crescia nos anos inteirados, uns doze.

Não importava os anos inteirados. Ela não pensava, não pensava, mas pensava, sim.

Pensava que devia ficar longe do velho branco seu dono, pai e avô que queria pôr um bisneto em seu ventre.

Alertavam as pretas meio endoidecidas.

– Nós estamos na beira da morte e esse homem cruel, com respiro do Demônio, - todas se benziam – só deixa nós aqui por sua causa.

 

Segundo as pretas velhas e o pai Nonô, o bicho branco, havia jurado que iria ter um bisneto da porquinha mestiça. E, se Deus quisesse, ainda faria um tataraneto, de modo que iria ajudar a branquear o Brasil.

- Foge! Falava Pai Nonô, que não era pai de sua mãe nem seu avô de carne, mas deveria ter sido.

Maria não queria pensar no perigo que se aproximava. Não queria. Já tinha tido um sonho de liberdade onde o mundo era lindo e ela preparava sua comida, lavava sua louça e comia o que queria, o que era seu. Era, apenas, um sonho.  

Nonô sempre dizia que tinha um santo nas pedreiras e uma santa nas cachoeiras que viam tudo e que falaram pra ele, que o corpo podia ser cativo, mas a alma não. E, caso roubasse dos outros seriam iguais a eles que roubavam seus corpos.

Isso, ela entendia.

 

Maria tinha um amor tão grande por um menino mesticinho catarrento e magrelo, cuja mãe morreu, depois de uma visita de um monte de homem branco que deu pinga pra ela e fizeram umas coisas que ninguém contava pras crianças o que era.

Esse pretinho roubou um cadinho de arroz de sua panela e ela fez que não viu, mas aquela senhora branca, que era sua dona, ela viu. A mulher nunca ia na cozinha, mas naquele dia ela foi. Estava de olho no pobrezinho e viu e deu corretivo de tirar sangue do menino e lágrimas da pretaiada, como ela chamava os escravos que ainda restavam na senzala. Mas, o gurizinho ficou vivo.

Maria lavava suas costas.

Ouvia as pretas velhas falarem que eles, os donos do Casarão não podiam mais fazer isso, que o mesticinho era livre, que era sobrinho legitimo de sangue de dona Antenora, que o irmão dela tinha matado a mãezinha dele, de tanto, tanto... aí, era a hora que elas se calavam e derramavam água dos olhos.

As três pretas velhas tinham vontade de fugir, mas estavam escangalhadas, desconjuntadas, não aguentavam nem andar, e ficavam ali por causa dela.

Sabe – se lá por que o malvado as temia e por que tinham dado um quartinho pras três velhas e pro Pai Nonô e que era onde ela dormia também, além do menino mesticinho da mãe morta pelo véio branco, irmão de Dona Antenora.

Por que o quarto era separado da senzala?

Talvez porque as pretas velhas fossem benzedeiras. Talvez.

Elas evitavam tocar nesse assunto. Mas, diziam que o pai Nonô e as três pretas haviam salvado a mãe dele de febre de tifo. Mas, e ela? Por que estava ali no quarto separado da senzala.

— Pra te resguardar, diziam as pretas.

— Resguardar de que?

Elas não conseguiam responder.

— Ocê tem que fugir Maria, assim que criar mais força, foge daqui.

No fundo Maria sabia. Ela sabia e temia.

— Prefiro a morte.

No entanto, Maria pensava em fugir, mas com as pretas e Pai Nonô, além do mesticinho que nem ela.

— Mas, pra onde iriam? E Pai Nonô, mais velho do que o mundo, o único homem negro velho, que restava na fazenda. Como ele ia conseguir fugir com as costas toda arqueada e as mãos pretas magras e retorcidas e cheias de dor? Já o mesticinho corria bastante, mesmo magrelinho. Se todos eles comecem bastante iam ficar fortes e podiam fugir, mas pra comer, eles tinham de trabalhar, senão, era couro nas costas. Dava dó ver eles capinando, embaixo do sol. Ela era proibida de ir na roça.  

O povo da senzala insistia que os da Casa Grande não podiam dar lambada, mas eles davam, davam lambadas, pisadas nos pés, bofete...

— Então, podia. Não podia? Podia sim. Eles davam. Davam sim. E, dar era pra ser uma palavra tão abençoada por Cristo Jesus, mas às vezes doía, como os beliscões da menina loirinha que soube depois que era sua irmã, por parte do pai.

Mas, Maria ficou feliz, que pelo menos, aquela menina, filha do pai dela com a dona Senhora Antenora, não fosse tão judiada como ela... como o mesticinho, seu primo de sangue.

— Ele não tinha nem nome, feito ela. Não registravam mais os pestinhas que nasciam, feito mesticinho, que nasceu de uma mula. Mula? Mas, mula não pare. Mula não dá cria. Vai ver que ele nasceu de uma escrava chamada Mula.

Então, Maria resolveu pôr nome no menino de Jesus.

— Jesus não devia de ser tão branquinho que nem no retrato da sala. Bem, que ele podia ser mais escurinho.

No fundo, ela acreditava que Jesus era mais pretinho, feito o pai Nonô. E, se fosse de pele mais clara, seria igualzinho o mesticinho.

Mas, ela só chamava Jesuisinho de Jesuisinho nas horas que ela podia abraçar ele embaixo da paineira, toda linda de nuvem branca lá encima e cheia de espinho duro aqui embaixo. Devia de ser esses os espinhos na coroa de Jesus.

— Ela não podia chamar um pretinho de Jesus. - Foi o que disse a senhora, sua dona. Era ofensa, um neguinho daquele ter o nome do homem mais bondoso que pisou nesta terra de maldição.

- Uai, mas se Jesus era tão bondoso, então não haveria de se importar com isso.

Senhora dona Antenora lhe deu um tapa na boca que limpou seus dentes e quase fez engolir a língua.

Mesmo assim, Maria continuou a chamar Jesuisinho de Jesuisinho, só que, lá embaixo da paineira, nunca mais na frente da senhora sua dona. 

Então, um dia, de tardezinha, o sol fazendo umas belezas no céu, deixando tudo da cor de ouro. Maria pensou ter visto um estranho andando naquelas paragens de meu Deus. Tentou correr, mas o estranho já tinha visto ela e se acercava. O rapaz carregava o chicote nas mãos.

— Ai! O chicote. Virgem Maria! Melhor ficar parada e abaixar a cabeça pra não incomodar o moço que sem os raios do sol, era branco vermelhado de sol. Tão vermelho que parecia ter enfiado a cara no borralho. O fogão.  Mas ele era mestiço. Ela sabia só de olhar. Devia ser o trabalhador livre que vinha pra cuidar do gado. Então, o chicote era pra dominar o gado e não ela e o povo da senzala.

Ela queria abaixar a cabeça, mas não conseguia tirar os olhos dele, não conseguia. Sabia que ele era especial. Ela sabia. Seu coração bateu diferente pela primeira vez. E, ela viu na poeira levantada pelas patas do cavalo que o moço puxava pela rédea, que sua vida ia mudar. Ela tinha certeza que ia mudar. 

E, nesse dia da chegada do moço foi o mesmo dia de seu sangue vir sujar suas pernas, justo nesse dia... Lá vinha o moço. Ele olhava pra ela, nos olhos dela, feito cobra que paralisa os bichinhos e as crianças, mas cobra não era má, só os deuses da mata pra saber por que fizeram as cobras com veneno. 

 “Esse moço não é mau. Ele só tem cara de mau, mas não é.”

– Que tá fazendo, aqui, negra?

- Nada, não, senhor. O senhor é o trabalhador livre que havia de chegar?

- Que você tá fazendo aqui?

- Só cuidando dos machucados do Jesuisin... do negrinho.

- Foi você que fez isso nele?

– Ave Maria, meu senhor. Não fui eu não. Foi a... Eu não sei quem foi. Não me separa dele, por favor. Por Nossa Senhora!

– Calma, moça, só to olhando os talhos na costa do menino.

Moça! Ele me chamou de moça. É a primeira vez que alguém me chama assim.”

– Moça, pega essa pomada e passa no menino. 

Ela pegou e seus dedos se encostaram. E ela conheceu o paraíso e o inferno.

Mais tarde, ela sabia que não, não conheceu o inferno.

O inferno era judiar de um menino que foi piorando, piorando, emagrecendo e quando levou outra surra daquelas brabas, desfaleceu e morreu feito as rosas do Jardim. As rosas tinham espinho, mas eram rosas e as rosas eram Jesuisinho e as três pretas. Os seus donos eram os espinhos.

Quando pensou nas suas três pretas, Maria chorou.

O véio branco tinha dado um corretivo nelas, porque elas não tinham limpado o pomar direito.

Mas era um pomar tão grande.

Elas tiveram que dormir no pomar. No dia seguinte as três tinham morrido juntinhas.(PAUSA, RESPEITOSA) Foi uma noite tão fria... Os outros pretos enterraram elas, bem longe da terra do véio branco que tinha medo dessas três bruxas pretas, como ele dizia.

Pai Nonô, também, tava doentinho, doentinho...

e morreu feito uma flor que perde suas pétalas e, tudo isso aconteceu durante um mês depois da chegada daquele homem que ficou grudado nos seus pensamentos e que olhava pra ela com um olhar tão bonito, tão aconchegante.

 

Pai Nonô morreu dizendo que a mãe dele veio buscar ele e estava vestida de luz. Maria acreditou porque ela via outro jeito dele ser recebido no céu.

E, num suspiro, ele falou.

- Maria, foge. Não tem mais quem te proteja.

E, voou para aquela Terra alumiada que ela sabia que existia pra quem era um anjo como Pai Nonô.

 

Bastou enterrar Pai Nonô e seu pai e dono veio olhar pra ela.

– Como é seu nome, moleca. – Ela sentiu nojo.

– Sei não, senhor.

– Como que não tem nome?

– Meu pai Preto Nonô me chamava de Maria.

– Seu pai? - Ele riu feito um demônio safado e escondido. - Vem pras estrebarias, hoje mais à noitinha, ali na cocheira, logo depois de sua dona e senhora Antenora, entrar para as rezas no quarto. Vou te dar um presente. O mesmo presente que dei pra sua mãe e sua avó e elas gostaram.

— Posso ir não no estábulo, não senhor.

O seu dono pai avô sacudiu o chicote e estalou no ar, perto da cara dela, sentiu o vento como inimigo pela primeira vez em sua vida.

— É que to naqueles dias de sujeira. O senhor sabe né. Então, não posso.

— É assim que eu gosto.

E, falou umas coisas tão miserentas que ela preferiu apagar de sua memória. E sentiu tanta vergonha de ser aquele o homem que lhe deu a vida. Não, ele não lhe deu a vida, ele deu a morte à sua mãe e à sua avó. Ela não atinava o que ele tinha feito, mas sabia que sua mãe não tinha gostado nem sua avó tinha gostado. Só o monstro tinha gostado.

 

Teve vontade de correr, mas as pernas não se moveram, sentiu um medo aterrorizante pela primeira vez na vida. Mas, passou rápido. Não era esse o destino dela. Não era. Ela sabia que não era.

- Sinhô vai fazer isso com sua filha e neta?

Ele deu uma tapa em sua cara que ela caiu. E, quando caiu, ela viu os sapatos do moço mestiço branco avermelhado, escondido nos pesados tecidos das cortinas querendo protege – la. Ele, de alma de cores misturadas, assim como ela. Ele que trabalhava pro inimigo por necessidade, por não querer ser capitão do mato, nem matador por pagamento, que diziam os brancos que eram as únicas coisas que os mulatos serviam. Mas, ele estava ali por causa dela.

 

O homem mestiço ouvia calado, carrancudo, escondido, com a mão na garrucha e a cabeça em profusão de tudo quanto é pensamento... pensamento que nunca tivera antes, mas que agora, tinha. Já havia visto muita mulatinha, era assim que chamavam, com desprezo, as filhas de brancos com mulher negra, sofrer os ataques das bestas feras, seus donos de corpo, alma e o que mais tivesse entre as pernas. Já havia visto tanta coisa. Até as pretas velhas não escapavam desses, desses... não conseguia achar um nome. Bestas feras. Isso. Bestas feras. O que vira de lambuzo nas propriedades desses tipos, uma porção de homem pra uma negrinha só. Às vezes, as mulatinhas que eram as próprias filhas desses brancos, como essa Maria, nem sobreviviam, eram jogadas no ribeirão pra sair rodando com suas saias de chitas, parecendo a dança das festas da Moagem. Só que as danças nos rios eram festas da morte, da maldade. Ele, um mestiço iria tirar aquela mocinha dali, nem que tivesse de matar todo mundo.

 

O dono da fazenda, o Besta fera agarrou Maria na marra. O capataz apertou forte e engatilhou sua garrucha e ficou pronto pra abater o demônio.

— Pois, agora, você me deixou querendo. É agora, mesmo, que te pego, vagabundinha e te faço um filho. Eu sei que você quer isso...

— Sinhô!

— Fale preta sem vergonha.

— Dona Antenora tá na porta.

O velho virou e deu de cara com as faces entumecidas de sua esposa.

— Essa cadela branca gelada não me apetece nem de olhar. — E, antes de sair, ele sentenciou — Num te pego agora, pretinha, mas, de hoje à noite você não escapa. E você, branca azeda vai ter o que merece, mais tarde.

 

O velho se foi e Hipólito de Guimarães desengatilhou e abaixou a garrucha que esteve apontada para a cabeça da Besta Fera. Sinhá Antenora se aproximou da mocinha, ia erguer a mão para esbofetea–la, mas uma convulsão de soluços e lágrimas impediu o gesto. A mulher branca correu para o quarto e Maria rezou por ela, durante a vida toda. Sentiu pena. Viu a dor e a humilhação daquela mulher que contavam que chegou ali novinha de tudo, com flor de laranjeira nos cabelos mostrando sua pureza de corpo e alma. Toda mimosa e cheia de felicidade no primeiro dia, o primeiro dia que foi o único dia que viram ela sorrindo. No segundo dia, Antenora Mariana já ficara velha de olho marejado, desde então ela foi se apagando, suas feições de triste virou carranca. O que tinha acontecido com ela?

— Foi no quarto, foi no quarto que a branca se congelou diante de tanta brutalidade.

As pretas falavam isso e Maria não entendia o que queriam dizer, mas com as idades correndo ela entendeu e nunca deixou de rezar pela mulher Antenora Mariana. Esses pensamentos passaram tão rápido pela cabeça dela que se assustou quando o moço saiu de detrás da cortina. E, então, ela tomou a decisão de sua vida. A decisão da qual nenhum dos dois nunca se arrependeu. Maria pegou a mão de Hipólito, o mestiço e disse: Vamos. E. ele nem pensou. Fugiram pra outro estado. Maria e Hipólito se casaram... E, tiveram muitos filhos e filhas, netos, bisnetos e até tataranetos.

PAUSA. MÚSICA.

Assim, Maria não padeceu pela miscigenação no país, como sua mãe, sua avó e tantas outras escravizadas que foram brutalizadas e forçadas a terem os filhos de seus algozes e esses filhos e filhas, tiveram outros filhos e outras filhas que podem ser você.  

A ATRIZ APONTA UMA FOTO PROJETADA OU ENTRE MEIO AO CENÁRIO.

ATRIZ – Ah, essa é Maria e a única foto que tirou em vida, aos 100 anos de idade. Maria é realidade. Sua descendência continua até hoje. (APONTA OUTRA FOTO) E esse é seu neto, que veio morar no Paraná e se casou. Seu nome é Orlando. Meu pai.

 

Fim